23 outubro, 2002

"Toco a tua boca, com um dedo toco o contorno da tua boca,vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a tua boca se entreabrisse e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e te desenha no rosto, uma boca eleita entre todas, como soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em teu rosto e que por um acaso , que eu nao procuro compreender, coincide exatamente com a tua boca que sorri debaixo daquela minha mão que te desenha.
Tu me olhas, de perto tu me olhas, cada vez mais perto e , então, brincamos de cíclope, olhamo-nos cada vez mais perto e nossos olhos se tornam maiores, aproximam-se, sobrepõem-se e os cíclopes se olham, respirando indistintas, as bocas encontram-se e lutam debilmente mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a lingua e os dentes, brincando nas tuas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um perfumeantigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se nos seus cabelos, acariciar lentamente a profundidade do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivessemos a boca cheia de flores ou de peixes, de momentos vivos e fragrância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de folêgo essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu te sinto tremular contra mim, como uma lua na água."

Trecho do livro O jogo da Amarelinha, Civilização Brazileira.

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